quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Das vítimas de "boas" intenções

"As vítimas de boas intenções continuam sendo 'vítimas'" diz Trevor Karsdale em seu ensaio The Pain of Reason[1]. Esta citação ressoava em minha mente enquanto lia as notícias sobre o 'Programa Palafitas Zero' levado a cabo pela prefeitura. Anunciado em 2008 pelo então candidato a prefeito de São Luís, João Castelo[2], o programa consiste em derrubar as palafitas das áreas de mangue do município, com a finalidade de "preservar nossas águas, nossos rios e cuidar da nossa gente, oferecendo moradias dignas,”[3] posto que “quem vive em São Luís está farto de contemplar o espetáculo das habitações de pau a pique surgindo de dentro da lama.”[4]
O candidato a prefeito prometia, então, “uma equipe especializada para se dedicar apenas à questão das moradias insalubres e que vai se debruçar para captar recursos com o objetivo de mudar a triste realidade” daqueles que vivem nas palafitas[5]. Em busca de recursos para implementar o projeto prometido, João Castelo – o prefeito – firmou, no dia 18/09/2009, parceria com o Banco Mundial (Bird) “para concretizar o projeto Palafita Zero, planejado para acabar com o drama de famílias que moram em casebres improvisados nos manguezais da capital maranhense,”[6] sob a crença de que, “com o “Palafita Zero”, será possível zerar as condições subumanas de pessoas que ainda moram em cima da lama.”[7]
Curiosamente, o site nacional do Banco Mundial não apresenta qualquer menção à parceria para viabilizar o projeto Palafita Zero, contudo, o informativo “Brasil – Uma Parceria de Resultados (Ano Fiscal 2011)” menciona um (único) projeto com a prefeitura ludovicense, datado de julho de 2008 (anterior ao mandato de João Castelo) e denominado ‘Recuperação do Bacanga’ cuja finalidade seria o “aumento da competitividade econômica em áreas específicas, incluindo o turismo, a preservação da herança cultural e o complexo portuário-industrial. Melhorias no saneamento e abastecimento de água e apoio para a reintegração de áreas informais. Reabilitação da Represa do Bacanga contra inundações”[8].
Seja como for, em Agosto de 2011 a Blitz Urbana, “criada com a [vaga] função de realizar orientação de processos e procedimentos a cumprir junto ao Poder Municipal local”[9] e cuja nomenclatura remete à operação nazista de bombardeamento estratégico de Londres,[10] derrubou diversas palafitas na região da Ilhinha, conforme pode ser visto no vídeo abaixo:


A julgar pela confusão dos habitantes da área, bem como seu desespero diante da ausência de expectativas relativas à moradia, pode-se inferir que a implementação do programa se deu sem qualquer transparência, diálogo ou negociação junto à população que seria por ele atingida, conforme o clássico modelo de sociedade burocratizada – que era alvo de críticas por Marx, na qual o governante ordena e o súdito obedece.
Neste sentido podemos relacionar as diversas declarações – fragmentadas pelo tempo e pela diversidade de fontes que as propagam, citadas no começo deste ensaio – em sua conjuntura e extrair algum sentido de suas orientações ideológicas. Sabemos que a ‘oferta de moradias dignas’, prometidas quando do anúncio do programa, são uma fantasia cuja finalidade estratégica é a de legitimar as ações de derrubada das moradias junto à população ludovicense. O sofisma da moradia digna por meio dos projetos de moradias populares é facilmente verificável quando se examina o destino de tais projetos no Brasil.[11]
Mais honesta é a alegação de que “quem vive em São Luís está farto de contemplar o espetáculo das habitações de pau a pique surgindo de dentro da lama”, pois que esta expõe um dos motivos centrais para a retirada das palafitas. Ocorre que a pobreza incomoda, uma vez que é uma constante lembrança do alto preço (moral) que pagamos, enquanto sociedade, para a manutenção do sistema econômico capitalista. Contudo, a visão da pobreza como incômodo não pode e nem deve esgotar os motivos que norteiam a operacionalização do Projeto Palafita Zero, sob pena de estancarmos apenas na interpretação moral de um fenômeno complexo.
Como orienta Žižek, o que observamos “no último estágio do capitalismo ‘pós-moderno’ e pós-68 é que a própria economia (a lógica do mercado e da concorrência) se impõe cada vez mais como ideologia hegemônica.”[12] Diante desta realidade, que permeia até mesmo a organização e legitimação do poder estatal, devemos nos perguntar que tipo de visão o mundo ocidental detém sobre a economia, para melhor entendermos como sua alçada à ideologia dominante afeta a orientação das políticas públicas. Para tanto, recorro ao ganhador do Nobel de Ciências Econômicas de 1998, o economista e filósofo Amartya Kumar Sen.
Para A. Sen o paradigma predominante no campo das ciências econômicas é o que ele denomina de “concepção desenvolvimentista restrita”, segundo a qual o desenvolvimento é identificado com o crescimento do PIB – Produto Interno Bruto (ignorando o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano), com a produção, consumo e lucro, e a pobreza e miséria são tidas como parte inevitável da vida moderna[13], o impossível/real do antagonismo social[14].
Neste sentido, quando as decisões políticas e medidas de austeridade se impõem, nos são apresentadas como questões de pura necessidade econômica[15], sob um paradigma que vê o desenvolvimento econômico como fim, e o desenvolvimento humano como conseqüência. O problema desta visão é que o desenvolvimento econômico não se traduz necessariamente em desenvolvimento humano – na diminuição da pobreza – se entendermos que a pobreza é mais do que a mera privação de bens (o que A. Sen denomina ‘o aspecto externo/material da pobreza’), e sim uma espoliação da pessoa, no sentido de privação de capacidades e liberdades (o que Sen denomina ‘aspecto interno/real da pobreza’)[16].
Ao derrubar as palafitas de uma forma hegemônica, sem diálogo com a parcela da população afetada pelo projeto, bem como sem apresentação de propostas para realocação destas pessoas, a Prefeitura de São Luís contribui diretamente para a diminuição das liberdades desta parcela da população, incapaz até mesmo de escolher as condições de superação da privação que os atinge. Em outras palavras o Poder Público, embebido de uma ideologia que naturaliza a economia, contribui diretamente para o aumento da pobreza e (conseqüente exclusão social) das pessoas que moram em palafitas e pondo a cheque um Estado que se percebe como democrático de Direito.
Esta parcela marginalizada da população tem consciência de sua vulnerabilidade e que sua falta de voz os impele à submissão e à exploração, mas não se vêem como identidade positiva capaz de romper com as barreiras da exclusão que lhes são impostas por normas sociais já arraigadas[17]. É preciso uma nova abordagem, um novo modelo de gestão pública baseado numa postura emancipatória, que ofereça aos pobres as oportunidades para desenvolver as capacidades dos indivíduos e grupos sociais[18], diferente da abordagem atual que é eminentemente assistencialista e paternalista, o que apenas contribui para a manutenção das condições de opressão.
Tal mudança pode parecer um sonho impossível, a princípio, pois a ideologia dominante pretende nos fazer aceitar a “impossibilidade” da mudança radical para tornar invisível o impossível/real do antagonismo que transcende as sociedades capitalistas. Dizem que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, mas a verdade é que, na efervescência do cenário político atual, “não sabemos o que temos de fazer, mas temos de agir, porque as conseqüências de não agir podem ser catastróficas”[19], e a atuação é válida, pois que “o ato é mais que uma intervenção no domínio do possível; o ato muda as próprias coordenadas do que é possível e, portanto, cria retroativamente suas próprias condições de possibilidade”[20].


[1] KARSDALE, Trevor. The Pain of Reason - Auto-publicado. 2010. passim.
[7] Idem.
[8] Banco Mundial. BRASIL – Uma Parceria de Resultados. p.15. Disponível em: http://siteresources.worldbank.org/BRAZILINPOREXTN/Resources/3817166-1268664407478/Parceria_Resultados_FY11.pdf
[12] ŽIŽEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa; tradução Maria Beatriz de Medina – São Paulo : Boitempo, 2011. p.10.
[13] SEN, Amartya Kumar. Development as freedom – New York : Alfred A. Knopf, 2000. p.3.
[14] ŽIŽEK, 2011. p.13.
[15] ŽIŽEK, 2011. p.13.
[16] SEN, 2000. p.20.
[17] GOMES, Jacqueline de Souza. A Identidade Positiva dos Excluídos. In: Discutindo Filosofia. Ed. 06. São Paulo : Escala Educacional. 2007. p.20.
[18] GOMES, 2007. p.21.
[19] ŽIŽEK, 2011. p.14.
[20] ŽIŽEK, 2011. p.14.

2 comentários:

CARTAS: Pensamentos e Dicas disse...

Muito bom seu artigo. Vou repercutir no meu blogue. Também me interessa a questão da moradia e ambiente em nossa terra.

Saudações

Rita Moraes

www.ritalunamoraes.blogspot.com

Odival Quaresma disse...

Obrigado, fique à vontade pra compartilhar o post!